A PRINCESA E O ZUMBI

Em Outubro se comemora o Dia da Consciência Negra. Essa data foi escolhida, em vez da Abolição da Escravatura, por coincidir com o dia da morte do líder negro Zumbi dos Palmares, em 20 de Novembro 1695. Sendo assim, o Dia da Consciência Negra procura remeter à resistência do negro contra a escravidão de forma geral, desde o primeiro transporte de africanos para o solo brasileiro, que data do ano de 1549.

Ao contrário da visão tradicionalista e branca da História do Brasil que ainda é ensinada em muitas escolas, a abolição oficial da escravidão no Brasil com a assinatura pela Princesa Isabel da Lei Áurea, não foi o ato heróico, humanista e nobre que a muitos fizeram crer.

No Chile, a escravidão foi abolida em 1823. No México, em 1829. O Império Britânico fez o mesmo em 1833 em todo o seu domínio. A França em 1848. Os EUA seguiram o mesmo caminho em 1865, após a Guerra de Secessão. Cuba extinguiu a escravidão em 1886.



O Brasil - como sempre, retardatário - só o fez em 1888, após anos de pressão externa, especialmente por parte da Inglaterra, maior potencia militar e econômica da época. Em 1826 a Inglaterra havia imposto ao governo brasileiro o compromisso de decretar a abolição do tráfico em três anos.

A Inglaterra, berço da Revolução Industrial, tinha como objetivo ampliar a exportação de seus produtos industrializados, e para isso era necessária a formação de amplo mercado consumidor, que só poderia existir com a substituição da mão-de-obra escrava pela assalariada.

Prova disso é que Maria I, rainha de Portugal e mãe de D. Joao VI, atendendo à pressões britânicas, aprovou um alvará em 5 de janeiro de 1785, que extinguia as manufaturas de tecido no Brasil, obrigando a colônia a consumir apenas produtos manufaturados e industrializados importados da Inglaterra.

Em 1880 o deputado de pernambucano Joaquim Nabuco apresenta à Câmara um projeto de lei propondo a abolição da escravidão, com uma cláusula que pevia a indenização dos escravos, seguindo modelo adotado em vários países, especialmente os EUA.

Quando a Leia Áurea é finalmente sancionada, ela não prevê nenhum tipo de ajuda ou indenização para os negros que travalharam forçadamente por gerações para o enriquecimento de inúmeras famílias de homens brancos.

Durante o período que a escravidão foi vigente em solo brasileiro, o racismo se consolidou não apenas como um conjunto de hábitos e conceitos popularmente difundidos, mas tinha base legal e ampla e pública aceitação nas instituições sociais.

Para ocupar serviços públicos da Coroa, da municipalidade, do judiciário, nas igrejas e nas ordens religiosas era necessário comprovar a "pureza de sangue", ou seja, provar que tinha origens puramente brancas (a ''comprovação de brancura'' era exigida dos candidatos), excluindo assim negros e mulatos.

O processo de selação também consistia no interrogatório de testemunhas, abertura de sindicâncias extensas no Brasil e em Portugal para atestar a inquestionável origem branca e cristã do candidato. Havia um conjunto de leis que proibia negros e mulatos de se "vestirem como brancos", ou seja, usar seda ou lã fina e ostentar joias ou adornos de ouro e prata, sob pena de confisco.

Décadas antes, em 1808 (ano da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil), o imperador Dom João VI assinou vários decretos para facilitar e incentivar a vinda - e a fixação - de imigrantes europeus (alemães, suíços, italianos, ucranianos, poloneses, açoreanos e japoneses) para o país.
Além de permitir que estrangeiros se tornassem proprietários de terras, a Coroa Portuguesa custeou o transporte, disponibilizou empréstimos a juros baixos, doou animais para transporte de carga e pessoas, entre outras vantagens.

Após o fim da escravidão, esses imigrantes continuaram chegando, e os latifundiários brasileiros em estados como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro recebiam incentivos do governo para contratar esses trabalhadores.

Nesse período, que se estende até meados da década de 1940, intensificaram-se as políticas eugenistas, isto é, de purificação racial ou braqueamento da população brasileira. O estímulo à imigração européia, décadas antes, tinham no ideal eugenista um dos seus principais motivadores. A ideologia eugenista, no Brasil, teve em nomes como Monteiro Lobato, Belisário Penna, Octávio Domingues e Edgard Roquette-Pinto, seus maiores defensores.

Isso nos leva a questionar a crença, ainda muito arraigada por aí, de que se tivéssemos sido colonizados por povo X ou V o nível de desenvolvimento do país seria outro é algo infantil; ou então que a região Sul seria mais desenvolvida porque foi colonizada por alemães, suíços, ucranianos, etc, que seriam povos mais desenvolvidos que os portugueses, africanos e indígenas, que ocuparam a região Nordeste, por exemplo. Ora, que distingue a atual situação de desigualdade entre as regiões brasileiras são, antes e acima de de tudo, fatores econômicos e políticos, não fatores étnico-culturais, de modo que aquela crença supracitada não passa de uma falácia, sem evidência alguma que a corrobore.

A ocupação territorial da região nordeste esteve baseada nas "plantations", que era um sistema de produção agrícola que tinha 4 características principais: grande propriedades de terra (latifúndio, vide as Capitanias Hereditárias), uso de mão-de-obra escrava, cultivo de um só produto agrícola (monocultura) e produção voltada ao mercado externo (exportação). Naquela região que hoje denominamos "nordeste", as terras pertenciam a uma minoria branca, de origem portuguesa principalmente, enquanto o resto da população, formada por negros (escravos ou forros), indígenas e mestiços só tinham a opção de vender sua força de trabalho nas plantações de cana, nos engenhos de açúcar e nas criações de gado.

No Sul o processo, orientado por políticas oficiais, de ocupação foi radicalmente diferente caracterizando-se pela formação de pequenas e médias propriedades, com uso de mão-de-obra familiar, cultivos agrícolas diversificados e produção voltada à subsistência e ao mercado interno.

Assim, desde o começo da formação desse país, negros e brancos nunca tiveram condições iguais de inserção na sociedade brasileira, não apenas porque os brancos recebiam vantagens, mas porque os negros já começaram em grande desvantagem, pois a liberdade lhes era negada.

Entendeu agora porque a Lei Áurea e a figura da Princesa Isabel não são -nem merecem ser - mais reverenciados pelo movimento negro do que a figura de Zumbi dos Palmares de outros negros como ele? Entendeu agora o motivo de se falar em ''dívida histórica''?

Número de negros escravizados trazidos da África para o Brasil durante todo o período em que a escravidão existiu:
Entre 1576 e 1600 = 40 mil indivíduos
Entre 1601 e 1625 = 150 mil indivíduos
Entre 1926 e 1650 = 50 mil indivíduos
Entre 1651 e 1700 = 360 mil indivíduos
Entre 1701 e 1720 = 292 mil indivíduos
Entre 1721 e 1740 = 312 mil indivíduos
Entre 1741 e 1760 = 354 mil indivíduos
Entre 1808 e 1850 = 1 milhão e 400 mil indivíduos

Atendendo a um antigo desejo da bancada ruralista, o ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira, alterou o conceito de trabalho escravo por meio de uma portaria publicada no dia 16 de Outubro de 2017 no Diário Oficial da União.  No artigo 149 do Código Penal constava que a escravidão contemporânea poderia ser definidas pela existência de trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes ou jornada exaustiva.

A nova portaria determina que o critério principal para classificar uma situação trabalhista como tendo condições análogas à da escravidão seja a existência de cerceamento de liberdade.  Na prática isso significa que se um trabalhador, por algum motivo (como medo, ignorância ou ameaça), não afirme que sua liberdade foi tirada, ou que afirme que aceitou voluntariamente aquelas condições de trabalho, os fiscais não poderão classificar a situação como crime trabalhista.

De acordo com o texto original da lei, que se baseia numa convenção das Nações Unidas, mesmo que um trabalhador aceite trabalhar por apenas um prato por dia, o Estado deve, por força da lei, considerar que tal prática consiste em exploração criminosa do trabalhador. Segundo o texto da lei, para que uma empresa condenada por prática de escravidão tenha seu nome incluído na "Lista Negra", é preciso que o ministro do trabalho aprove, dando caráter político, em vez de técnico, à decisão.

Além disso, para os autos de infração emitidos por fiscais em relação à flagrantes de trabalho escravo serem validados, será necessário um boletim de ocorrência de um policial presente e que também considere que a situação caracteriza trabalho escravo ou análogo a ele. Ou seja: se o policial por algum motivo não concordar...

Nunca antes na história deste país se regrediu tanto!


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